Financiamento de Bens Comuns Urbanos. Parte I

Edited on 13/04/2021

Como podem os bens comuns urbanos ser financiados? A equipa Civic eState explora o impacto social do financiamento e do investimento financeiro com a Eutropian, o Banco Europeu de Investimento e a Fundação Trias

Apesar do desafio colocado pela pandemia para projetos relacionais como o Civic eState, as sete cidades envolvidas não deixaram de trabalhar em conjunto - embora digitalmente - e de colaborar em horizontes partilhados. Desde o início do confinamento em vários países europeus, a Rede Civic eState iniciou a exploração de possíveis instrumentos de financiamento - como a contratualização de resultados sociais e outros instrumentos sociais ao abrigo dos Fundos Estruturais e de Investimento Europeus para apoiar a criação e gestão de bens comuns urbanos durante e no período pós-Covid.

Através de uma série de reuniões on-line com vários peritos, a rede Civic eState analisou modalidades de cooperação entre potenciais investidores a longo prazo, cidades, e iniciativas de bens comuns urbanos. Estas reuniões salientaram a importância da medição de impacto através de indicadores de desempenho, consideraram vários investimentos e estratégias legais, e identificaram modelos que os bens comuns urbanos podem adotar para serem financiados.

Como salientou o Perito-Líder Christian Iaione, o projeto Civic eState tem três componentes: primeiro, a implementação de uma parceria público-privada-comunitária; segundo, um esforço regulamentar para desenvolver um entendimento comum sobre como definir a gestão, a utilização e a aprovação comunitárias; e finalmente, a sensibilização sobre como estes projetos podem alcançar a independência financeira e a sustentabilidade a longo prazo para ultrapassar a fase de arranque.

Relativamente ao terceiro componente, o Civic eState contou com a participação de Levente Polyak, especialista no financiamento de projetos comunitários e coeditor de Funding the Cooperative City, um livro que apresenta histórias e modelos de financiamento comunitário e economia cívica. Polyak organizou um workshop para mostrar aos parceiros do Civic eState como podem aceder a financiamento à escala europeia, e convidou dois oradores: Rolf Novy-Huy, da Fundação Trias e Wojciech Deska, da Divisão de Desenvolvimento Urbano do Banco Europeu de Investimento.

Opções de financiamento através do Banco Europeu de Investimento

O Banco Europeu de Investimento (BEI) é um banco não comercial, detido por todos os estados membros da UE (operando de forma semelhante ao Banco Mundial). que representa 20% dos empréstimos destinados a projetos urbanos da UE. A UE é responsável pela sua política. E a sua estratégia de investimento baseia-se em três pilares: crescimento inclusivo, sustentável e inteligente. Mais recentemente, o BEI tornou-se o "banco do clima" da UE, com os investimentos sustentáveis a representarem 50% da carteira de investimento. O BEI é uma instituição de crédito de longo prazo, com maturidades (duração do empréstimo) de 20 a 30 anos. Para além dos projetos climáticos, o BEI está hoje também a centrar os seus esforços na crise da Covid-19.

Existem duas limitações principais ao financiamento direto de bens comuns urbanos, como refere o orador convidado Wojciech Deska, Especialista Sénior em Desenvolvimento Urbano do BEI. Em primeiro lugar, dada a grande dimensão do banco, este apenas financia projetos que envolvam um mínimo de 50 milhões de euros ou mais (geralmente 100 milhões), um valor que os bens comuns urbanos provavelmente nunca atingirão. Em segundo lugar, o BEI financia apenas projetos de elevada qualidade, o que significa que normalmente não há transações com organizações que não possuam uma experiência sólida.

Não obstante, os quatro instrumentos ou produtos seguintes poderão ser utilizados para projetos de bens comuns urbanos:

Empréstimo ao investimento: a cidade pode obter um empréstimo para um projeto maior, parte do qual pode financiar iniciativas de bens comuns urbanos (por exemplo, o BEI concorda em financiar um projeto misto no bairro).

Empréstimo-quadro: este é provavelmente o serviço mais popular no BEI. A cidade pode obter um empréstimo para implementar uma estratégia alargada num determinado período de tempo (por exemplo, o que é que a cidade vai fazer nos próximos cinco anos?) Neste quadro, os projetos não têm necessariamente de ser identificados à partida e podem incluir apoio a uma variedade de setores, incluindo habitação social, cuidados de saúde, educação e eficiência energética. As cidades podem procurar financiamento para bens comuns urbanos ao abrigo de um empréstimo-quadro.

Empréstimo-quadro intermediado: em vez de financiar apenas uma cidade, o BEI pode financiar um grupo de cidades mais pequenas. Neste caso, o projeto implicaria uma colaboração entre o BEI e bancos comerciais locais e especializados atuando como intermediários para fornecer uma linha de crédito para um conjunto de projetos. Tendo em conta a ampla gama de iniciativas de bens comuns urbanos, estas podem ser elaboradas como um produto e atrair financiamento do BEI através de bancos comerciais (especializados ou internacionais). Isto pode ser feito numa base transfronteiriça, pan-europeia.

Fundo de ações: este é um fundo de fundos. Embora não financiando diretamente bens comuns urbanos, pode apoiá-los através dos fundos de investimento europeus

Títulos de impacto social (TIS): houve um aumento considerável na utilização de títulos sociais, por exemplo, para investimentos de sustentabilidade e de impacto social. Os TIS têm sido utilizados especialmente para promover a inovação na prestação de serviços públicos. Embora os TIS sejam ainda relativamente recentes, algumas evidências empíricas sugerem que existem riscos associados à sua utilização, sendo particularmente elevados os riscos financeiros e reputacionais associados aos agentes do setor público, mesmo com o envolvimento de investidores sociais e capital privado. Acresce que a redistribuição dos riscos entre investidores varia significativamente entre diferentes modelos de TIS, pelo que é necessária uma avaliação cuidada. Finalmente, continua a ser difícil para as pequenas ONG acederem aos projetos de TIS, que são mais suscetíveis de envolver grandes ONG consideradas como estando preparadas para o investimento (Edmiston e Nicholls, 2018), que atinge atualmente 200 mil milhões de euros anuais. Neste caso, o BEI funcionaria como um investidor de referência, procurando atrair outros financiadores para investir em títulos ligados a soluções para problemas sociais com um resultado social tangível.

O discurso de Wojciech Deska sublinhou a importância que a dimensão tem para o BEI, razão pela qual o Civic eState escolheu o título de "pooling the urban commons", com o objetivo de criar um número maior de projetos que respeitem os critérios do BEI. Sobre a questão da fiabilidade do investimento, Christian Iaione observou que as cidades devem assumir a liderança nestes processos porque são parceiros institucionais fiáveis: os municípios podem criar instrumentos e parcerias para interagir com o BEI e outros investidores a longo prazo.

A Fundação Trias como um potencial financiador

Antes de ajudar a fundar a Stiftung  trias (ou Fundação Trias), Rolf Novy-Huy trabalhou com bancos alemães durante mais de 30 anos, especializando-se em financiamento social, bens comuns urbanos e outros projetos cívicos. A Fundação Trias é um grande exemplo de financiamento da auto-organização e da economia circular, que começou há 18 anos com 74.000 euros. Hoje tem um capital próprio de cerca de 12 milhões de euros e 43 projetos, incluindo 16 projetos imobiliários.

"Trias", retirado da língua grega, representa os três pilares da fundação:

»»» Questão do solo: a criação de bens comuns urbanos que evitem a especulação, a apropriação de terras e a devastação da terra.

»»» Sustentabilidade: utilização de materiais de construção sustentáveis que não prejudiquem a saúde; poupança de energia; instalações partilhadas.

»»» Habitação cooperativa: apoio a projetos de habitação e economia circular.

As entidades que trabalham com a Fundação Trias são organizações sem fins lucrativos, associações, cooperativas, iniciativas de co-housing (por exemplo, a Mietshäuser Syndikat, construção de habitação em copropriedade). E todas elas têm objetivos idealistas - a Trias dá grande ênfase a este aspeto, e à estrutura democrática dos seus interlocutores - todavia, estas têm de ser comercialmente sólidas e estáveis, caso contrário é difícil cooperar com elas.

Estas organizações costumam pedir ajuda à Fundação Trias para adquirir os terrenos em que pretendem construir, procurando liquidez. Contudo, frequentemente, a Fundação Trias não tem liquidez suficiente, devido aos seus investimentos anteriores. Razão pela qual, a cooperação entre a fundação e a organização em questão é necessária para obter liquidez suplementar.

Para iniciar uma colaboração, a Fundação Trias procura um conceito sólido e uma equipa de pessoas suficientemente estável para transformar ideias em projetos de impacto e para lidar com o quadro de investimento - normalmente entre 3-4 milhões de euros. Isto inclui a capacidade de obter dinheiro, investi-lo, e dirigir-se aos parceiros do projeto para conseguir o apoio e o capital necessário. Para além de ter os conhecimentos essenciais para avaliar as organizações, a Fundação Trias também analisa o terreno ou o local de construção. A Trias requer estas condições para tornar o projeto mais atrativo para financiamentos adicionais de outras fontes (geralmente um banco, outra fundação, ou um sujeito privado).

Rolf Novy-Huy apresenta três exemplos de projetos financiados pela Trias:

  • StadtGut Blankenfelde, um complexo habitacional na parte norte de Berlim que alberga quase 1000 pessoas num espaço habitacional multigeracional. O terreno é propriedade da fundação e uma cooperativa de Berlim é detentora do arrendamento.
  • Leuchtturm, um novo edifício no centro de Berlim para habitação multigeracional, centrado na sustentabilidade e na poupança de energia.
  • KunstWohnWerke em Munique, que combina habitação e trabalho para artistas (ateliers e espaços habitacionais), e assegura rendas acessíveis para todos.

Videoentrevista comissariada pela revista Cooperative City

 

Como funciona o financiamento de projetos na Fundação Trias

A fundação financia os projetos de duas maneiras:

- Terrenos: a Fundação Trias procura adquirir terrenos para os manter na fundação e protegê-los assim da especulação. Qualquer terreno adquirido pertence à fundação e não pode ser vendido, para evitar a especulação. O financiamento utilizado para adquirir terrenos é uma combinação de doações, património e empréstimos acumulados ao longo do tempo.

- Financiamento de edifícios: para além de terrenos, a fundação necessita de adquirir edifícios e promover a sua reabilitação. Trata-se de um investimento em tudo semelhante ao que uma pessoa singular ou empresa faria, necessitando de 25% de capital próprio e outros 75% de um terceiro (por exemplo, um banco).

A Fundação Trias, assume o papel de supervisor, ligando estes dois componentes através de um contrato de direito de superfície, o que permite salvaguardar os objetivos originais do projeto e assegurar que este permanece sem fins lucrativos.

Todos os projetos pagam uma taxa relativa à locação do terreno (como parte da sua renda), o qual reverte a favor da Fundação Trias. Parte destas receitas é reinvestida em atividades sem fins lucrativos envolvidas no projeto, tais como jardins de infância. A parte restante é utilizada para o trabalho da Fundação Trias e para apoiar futuros projetos. É essencial que a fundação tenha um excedente para evitar a falta de liquidez e assegurar que mais projetos possam beneficiar do seu apoio. Assim, a Trias ajuda projetos na sua fase de arranque e os próprios projetos contribuem para financiar iniciativas futuras.

A Fundação Trias já está a trabalhar para reforçar o seu modelo e para iniciar uma colaboração com o BEI e o Civic eState. O seu modelo precisa de ser adaptado aos quadros jurídicos nacionais, e requer uma estrutura jurídica que o permita, tal como direitos de superfície sobre edifícios patrimoniais.

O modelo dos Fundos de Terras Comunitários

Finalmente, durante as nossas reuniões com os oradores convidados, vários parceiros Civic eState da cidade salientaram a importância dos Fundos de Terras Comunitários (FTC), um modelo cada vez mais popular em projetos e cidades da UE. Os FTC são um modelo de desenvolvimento liderado pela comunidade, em que organizações locais sem fins lucrativos desenvolvem e gerem habitações e outros recursos vitais (tais como empresas comunitárias, produção agrícola ou espaços de trabalho). O principal objetivo de um FTC é assegurar que estes espaços permaneçam acessíveis com base no nível de rendimento dos habitantes locais que pretendem atrair. Os FTC são estritamente sem fins lucrativos, o que significa que podem ter um excedente como empresa comunitária, mas que esse excedente deve ser reinvestido na comunidade.

Os FTC tiveram origem nos EUA como resultado da luta organizada pelos direitos civis das comunidades afro-americanas (Gordham Nembhard 2014) e estão a ser cada vez mais reconhecidos na UE, tanto pelos países de direito comum como pelos países de direito civil. A Inglaterra e o País de Gales permitiram a criação de FTC pelas comunidades locais para aquisição de terrenos e edifícios, na Lei da Habitação e Reabilitação de 2008; o governo de Bruxelas reconheceu e encorajou a criação do FTC de Bruxelas no Código da Habitação de Bruxelas (Bettini 2018). Embora semelhante a outros tipos de gestão da propriedade comum que podem ser utilizados para os bens comuns urbanos, tais como as cooperativas, por exemplo, a sua gestão foi concebida para afastar expressamente o móbil do lucro da construção e uso do solo e serem avaliadas com base no valor comunitário que criam (Huron 2018; Foster e Iaione, 2021).

Os FTC são um modelo interessante para a rede Civic eState porque, ao contrário de muitos projetos com uma abordagem descendente ("do topo para a base") desenvolvidos entre os parceiros da cidade, estes podem ser verdadeiramente moldados pelas comunidades locais e pelas suas necessidades. Algumas das cidades da rede, como Ghent e Barcelona, já estão a experimentar os FTC.

Pode ler o artigo "Financiamento de Bens Comuns Urbanos. Parte II" aqui

Referências bibliográficas:

- Edmiston, D., & Nicholls, A. (2018). Social Impact Bonds: The Role of Private Capital in Outcome-Based Commissioning. Journal of Social Policy, 47(1), 57-76. doi:10.1017/S0047279417000125

- Foster, S. and Iaione, C. The Co-Cities (MIT Press, forthcoming 2021)

- Huron, A. (2018. Carving Out the Commons: Tenant Organizing and Housing Cooperatives in Washington, DC. Minneapolis: University of Minnesota Press

- Bettini, Fabiana, The Rise of Community Land Trust in Europe(link is external) (LabGov.city, Sep. 6, 2017)

Texto da autoria de Christian Iaione, apresentado a 17/02/2021

 

Submitted by Ana Resende on 13/04/2021
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Ana Resende

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