Na iniciativa Walk’n’Roll, 27 diferentes vilas, cidades, e metrópoles das redes RiConnect, Thriving Streets e Space4People tinham uma missão em comum. Em conjunto, refletiram sobre como a mobilidade pode desempenhar um papel importante na construção de melhores espaços públicos e melhorar a qualidade de vida das comunidades locais. Iván Tosics, Perito URBACT que seguiu a sua viagem de intercâmbio e aprendizagem, partilha connosco algumas das principais conclusões, descobertas e questões em aberto que foram levantadas durante o Walk'n'Roll, e que estão compiladas num novo Guia. Viaje connosco e desfrute da leitura!
A recente pandemia foi um episódio importante na história do desenvolvimento urbano. Muito se pode aprender com as reações imediatas à crise sanitária, especialmente em cidades densas. Houve muitos exemplos brilhantes de intervenções táticas inovadoras no espaço público, políticas de habitação inclusivas, novos tipos de apoio económico e mecanismos de proteção social, a partir dos quais podemos fazer um balanço.
À medida que o pico da pandemia foi chegando lentamente ao fim, a vida nas cidades voltou rapidamente ao ritmo pré-covid. Uma herança negativa é o crescimento incessante da suburbanização, um processo que explodiu nos últimos dois anos não só na Europa, mas em quase todas as partes do mundo...
Um efeito comum em diferentes cidades
Em Oslo (NO), os movimentos internos dentro e à volta da cidade têm mostrado um aumento da migração para fora dos centros urbanos nos últimos dois anos, com pessoas entre os 25-30 e os 60-70 anos a afastarem-se da cidade, em direção à periferia e mais além. O “efeito do trabalho a partir de casa” pode explicar parcialmente este fenómeno. As pessoas com salários mais elevados tendem a afastar-se. É interessante notar, porém, que a maioria dos que se afastaram do centro eram pessoas que não nasceram em Oslo, de acordo com estudos.
Do mesmo modo, nas cidades americanas, tornou-se tangível uma substancial reafetação de habitação e procura de escritórios. As pessoas escolheram mudar-se para os subúrbios, longe dos centros densos das cidades. Alguns analistas designaram este fenómeno de ”efeito” donut». Ou seja, denota a ascensão dos subúrbios e a queda do centro da cidade, impulsionada pelo medo de multidões e pela oportunidade de trabalhar a partir de casa.
Numa análise muito recente sobre a situação da área urbana de Paris (FR), o meio académico tentou recolher toda a informação disponível sobre a migração residencial interna, utilizando dados pouco comuns. As informações das associações rurais, dos correios relativamente ao redirecionamento permanente do correio para novos endereços, e até das inscrições nas escolas foram utilizadas como fontes inusitadas, mas ricas. Conforme demonstrado, os fluxos migratórios do centro da cidade para a orla urbana são visíveis. De acordo com esta análise, este movimento de pessoas não pode, no entanto, ser considerado um êxodo urbano. Então, se não se trata de um êxodo, que novas formas de migração são estas?
As novas tendências de migração intraurbana
Em primeiro lugar, a investigação sugere que não existem ligações diretas e causais entre a propagação do vírus e a densidade urbana. De acordo com um estudo da OCDE, não é apenas a densidade que torna as cidades vulneráveis à covid-19, mas sim uma combinação de fatores. As condições estruturais económicas e sociais desempenham um papel neste contexto com superlotação, desigualdade, condições de vida insuficientes e a concentração espacial dos habitantes urbanos pobres.
As consequências desta nova suburbanização, por outro lado, são muito claras: crescentes problemas climáticos e energéticos devido ao aumento da utilização do automóvel, intensificação das disparidades sociais, uma vez que aqueles que estão a sair do centro da cidade são os que podem dar-se ao luxo de o fazer. Além disso, há cada vez mais problemas em locais de onde as pessoas tendem a sair. Na região de Budapeste (HU), por exemplo, há queixas crescentes nos aglomerados populacionais relacionadas com problemas de infraestruturas físicas e humanas, causados pelo rápido crescimento não planeado no que toca a novos residentes.
Dito isto, a cidade pós-covid apresenta-nos um lado positivo, uma oportunidade de repensar os princípios do desenvolvimento urbano compacto. Por exemplo, o professor britânico Greg Clark dá-nos uma visão com cidades miscigenadas e um processo de planificação mais difundido. Defende uma distribuição mais ampla de atividades entre as áreas urbanas para oferecer mais oportunidades às cidades de segundo e terceiro níveis. Também defende uma melhor disposição dos serviços dentro das áreas urbanas funcionais, com base no crescimento da “vizinhança” e do capital social emergente.
Clark afirma que as pessoas que vivem nas periferias ainda podem deslocar-se de vez em quando ao centro das grandes cidades e reconhece que nem sempre trabalham a partir de casa. Ao mesmo tempo, também se habituarão à vida local do sítio onde vivem. As pessoas passam mais tempo – e gastam mais dinheiro – nos próprios bairros e, por consequência, poderão surgir novas oportunidades para as cidades, os subúrbios e os centros urbanos secundários. Portanto, estes não são simplesmente lugares onde as pessoas dormem e trabalham a partir de casa, mas também lugares de intercâmbio e de encontros, onde, eventualmente, as comunidades podem prosperar.
Esta ideia apresenta desafios para o desenvolvimento urbano futuro, tais como, por exemplo, questões relacionadas com o planeamento metropolitano. Onde construir novas habitações e residências? E como regular as tarifas de transporte? Estas são apenas algumas das questões que foram discutidas durante a conferência Walk’n’Roll em Barcelona (ES), realizada em julho de 2022. As conclusões são resumidas a seguir.
Como melhorar as áreas densas existentes?
A definição mais amplamente aceite de uma densidade urbana adequada é a que reconhece a necessidade de uma mudança na acessibilidade: a alteração do transporte urbano e do ordenamento do território com base na capacidade das pessoas chegarem aos destinos e não na capacidade de viajarem rapidamente. Esta visão baseia-se no princípio da re-humanização das cidades.
O aspeto de proximidade
Na conferência Walk’n’Roll, o tema da proximidade esteve no centro da discussão. Para que os residentes abandonem a utilização frequente de veículos e, em perspetiva, também a propriedade de um automóvel, é necessário mudar as áreas urbanas. Devem permitir que as pessoas cheguem aos destinos mais importantes do dia a dia num curto espaço de tempo a pé, de bicicleta ou usando transportes públicos. Há muitas ideias apresentadas para esta mudança, como o conceito da cidade de 15 minutos. Além das práticas inovadoras tais como os super-quarteirões, o Tempo30 e a gestão de estacionamento – que são descritas em pormenor no Guia da Walk’n’Roll, Caderno 2. Encontrará ainda abaixo duas ideias adicionais.
A cidade prioritária para os peões
Pontevedra (ES) é uma cidade de dimensão média, com 83 000 habitantes. Em 1999, era apenas mais uma cidade orientada para os automóveis, mas as coisas começaram a mudar com a eleição de um novo presidente da câmara – que ainda hoje ocupa este cargo. Na altura, Miguel Anxo Fernández Lores disse aos cidadãos que a aquisição de um carro não confere magicamente um lugar de estacionamento com 10 metros quadrados de espaço público.
As ideias dele consistiram em fazer uma diferenciação da necessidade de mobilidade, de acordo com critérios sociais. Priorizou as pessoas, transformando pelo menos metade da superfície de todas as ruas originais em zonas pedonais. Foram criados cruzamentos sem semáforos nem passeios elevados, juntamente com a limitação das horas de estacionamento no centro da cidade a um máximo de 15 minutos. Além disso, foi construído estacionamento subterrâneo sob concessão e foram disponibilizados lugares de estacionamento público gratuitos num raio de 15-20 minutos a pé do centro.
Os resultados destas intervenções foram espantosos: uma diminuição do tráfego motorizado em 77 % na zona urbana densa e em 93 % no centro da cidade, para além de uma diminuição dos acidentes de viação, sem vítimas mortais. Pontevedra tornou-se um local de elevada qualidade de vida, com espaços públicos que servem as pessoas, em vez dos carros.
Lugares sem carros em todos os bairros
Já em 2014, em colaboração com 24 Juntas de Freguesia, o Município de Lisboa (PT) iniciou o programa ”Uma Praça em Cada Bairro”. O programa, que está a ser implementado atualmente, contribui para a renovação de áreas da cidade, afastando as pessoas da utilização dos automóveis e criando novos espaços públicos. As praças e ruas tornar-se-ão o ponto de encontro da comunidade local e “microcentros”, concentrando a atividade e o emprego.
De agora em diante, as caminhadas, as bicicletas e os transportes públicos serão privilegiados, uma vez que o tráfego automóvel será significativamente limitado. O programa municipal em 150 praças e ruas, praticamente em todos os bairros de Lisboa, só poderia ser realizado com o apoio da população. O programa contou com fortes processos de participação pública.
Potenciais externalidades das políticas de melhoria do espaço público
É evidente que a melhoria das condições de vida, com mais espaços públicos e menos carros, pode levar ao aumento das rendas, afastando os residentes mais vulneráveis da cidade. É por isso que é fundamental o setor público controlar os efeitos de gentrificação. A eficiência da intervenção pública depende da vontade e do poder político da liderança municipal, bem como do sistema habitacional da cidade em questão. Um bom exemplo é a cidade de Viena (AT), onde a maioria do parque habitacional está sob controlo público direto ou indireto, com poucos ou nenhuns efeitos de gentrificação devido à mobilidade e à melhoria do espaço público.
A situação é ligeiramente mais difícil em Barcelona, onde a percentagem de habitação para arrendamento representa 31 % do setor da habitação. Apenas uma pequena parte destas casas é, na realidade, propriedade do setor público, tornando assim quase impossível que o município defenda os inquilinos. Para enfrentar este desafio e evitar um “efeito New York Highline”, o município atribui subsídios aos residentes urbanos pobres, regula as rendas privadas, supervisiona o mercado imobiliário e até negoceia com os senhorios.
Como criar uma cooperação metropolitana eficiente em cidades miscigenadas?
No mundo pós-pandemia, não basta tornar os núcleos urbanos densos mais atrativos. Também é necessário prestar atenção aos locais periféricos para os quais muitas famílias pretendem mudar-se. O planeamento em territórios maiores pode levantar diferentes questões, sobre onde deve ser construído um novo parque habitacional ou como regular e tributar diferentes meios de transporte. O aspeto principal da intervenção pública em territórios mais vastos é uma coordenação metropolitana, que pode ser ilustrada pelos exemplos abaixo.
Transformar autoestradas em avenidas urbanas
O período clássico de suburbanização começou nos finais dos anos 50 nos EUA, com a construção de 60 mil quilómetros de autoestradas financiadas por enormes subsídios do governo central. Os urbanistas foram incansáveis na construção de rodovias na estrutura urbana, eliminando bairros vulneráveis com menos capacidades de resistência e, finalmente, garantindo a separação de funções, seguindo os principais conceitos de planeamento da época. Uma vaga semelhante de “modernização” orientada para os automóveis também atingiu a maioria das cidades europeias. Durante a conferência Walk'n'Roll, os agentes urbanos apresentaram exemplos de esforços recentes para inverter este fenómeno.
No decurso do trabalho realizado pela Metrex para a plataforma de aprendizagem From Roads to Streets – com o apoio da Eurocities e do URBACT – são analisados muitos casos europeus, incluindo as estratégias transformadoras adotadas em Helsínquia (FI), Oslo (NO), Lyon (FR) e Bruxelas (BE). Nestas cidades de crescimento dinâmico, o modelo orientador é a intensificação urbana para concentrar o crescimento e evitar a expansão urbana. Uma forma de alcançar este princípio é orientar o novo desenvolvimento para áreas ao longo das autoestradas – contanto que estas sejam transformadas em avenidas urbanas, com mais espaço para os veículos não motorizados. Em Utrecht (NL), por exemplo, foram calculadas duas projeções alternativas para cenários futuros e, segundo as mesmas, o “Modelo de Proximidade” prevê menos 20 % de utilização de automóveis.
As oportunidades e os desafios destas novas avenidas urbanas estão reunidos num projeto para humanizar a estrada N-150, que é o elemento central do Plano de Ação Integrado de Barcelona para a rede RiConnect. Este projeto aborda a estrada nacional, do tipo autoestrada, na periferia da área metropolitana, que criou uma divisão entre os estabelecimentos e priorizava a velocidade da mobilidade. A fim de restaurar antigas ligações entre os municípios periféricos, nasceu o conceito de estradas metropolitanas: sem construir novas estradas, as ligações extintas entre as áreas têm de ser recuperadas. Tal deverá diminuir o tráfego na estrada nacional e até permitir que as pessoas circulem de uma cidade para outra, o que não era anteriormente possível devido às autoestradas.
Melhorar a rede ferroviária para garantir a cooperação metropolitana
O Plano de Ação Integrado de Cracóvia (PL) para a rede RiConnect mostra outra forma de criar a cooperação metropolitana. O Skawina Mobility Hub pretende criar um ponto de conexão numa das cidades satélites de Cracóvia, na linha ferroviária de alta velocidade que está em construção.
Além de explorar as futuras funções do centro de mobilidade em evolução, as ligações intermodais, as instalações de park and ride (P+R) e a ligação da estação ao centro da cidade de Skawina, empreendem-se muitos esforços para mudar a mentalidade das pessoas em matéria de mobilidade. Isto inclui workshops de cocriação, que resultaram no estabelecimento do sistema integrado de bilhetes.
Cracóvia é um bom modelo para introduzir o transporte público na reflexão global sobre a área metropolitana. Contudo, estas estratégias têm de enfrentar o desafio financeiro de gerir os transportes públicos. Durante a crise da covid, o transporte público diminuiu em quase toda a parte, e a recuperação ainda é lenta.
Reunir o planeamento e a governação a nível metropolitano
A Área Metropolitana de Barcelona (AMB) é um ótimo exemplo de como o planeamento e a governação se podem unir, não só ao nível da cidade, mas também ao nível metropolitano. A AMB, Parceira Líder da rede RiConnect, é uma agência com competências em mobilidade e espaço público na área metropolitana – que conta com o dobro de habitantes, em comparação com a própria cidade. A AMB está a gerir um plano de mobilidade muito inovador que abrange diferentes aspetos, tais como a criação de espaços seguros e confortáveis para os peões e métodos sustentáveis de mobilidade, reduzindo simultaneamente a utilização de transportes motorizados privados.
Infelizmente, nem todas as cidades têm sistemas de governação metropolitana poderosos e/ou agências sólidas para o planeamento e a mobilidade. Na falta destes, a cooperação ao nível do planeamento urbano entre os municípios da área urbana pode ser muito útil. Por vezes, estes são iniciados num processo da base para o topo, em combinação com o nível nacional, a fim de utilizar eficientemente os recursos da Política de Coesão da UE. A área metropolitana de Cracóvia (KMA), por exemplo, é responsável pela coordenação dos investimentos em transportes, que são implementados no quadro de Investimento Territorial Integrado (ITI) para a cidade e os respetivos 14 municípios vizinhos.
Como avançar para uma mudança na acessibilidade?
O novo Guia da Walk’n’Roll divide-se em três cadernos – PORQUÊ, O QUÊ e COMO – e apresenta soluções que qualquer cidade, independentemente da dimensão, pode usar como referência para impulsionar a mudança para cidades mais miscigenadas e menos compactas. No entanto, para enfrentar o desafio mais recente da suburbanização pós-covid, as intervenções práticas apresentadas têm de ser combinadas com visões territoriais. A regulamentação, o planeamento e o apoio das instituições de governação são igualmente importantes. Embora isto possa parecer desafiador, há diferentes recursos que podem ser especialmente úteis. Veja-se, por exemplo, a política de coesão da UE, onde os investimentos nos transportes urbanos mais do que duplicaram – de 8 mil milhões de euros em 2007-2013 para 17 mil milhões de euros em 2014-2020, com ainda mais oportunidades no próximo período de programação.
O primeiro convite à apresentação de propostas URBACT IV (2021-2027) para redes de planeamento de ação é também uma excelente ocasião para as cidades encontrarem parceiros para o intercâmbio, propor ideias-piloto e desenvolver um conjunto integrado de ações a nível local. Embora o URBACT saliente a importância das prioridades do verde, das questões de género e do digital, as redes RiConnect, Thriving Streets e Space4People são provas vivas da riqueza de temas que podem ser abordados dentro do espetro de qualquer assunto urbano, incluindo o desafio atual da mobilidade. Estes projetos estão na interseção da construção de cidades mais inclusivas – para as mulheres e para todos – promovendo simultaneamente a redução das emissões de carbono.
As cidades que desejem candidatar-se podem escolher qualquer tópico da rede que considerem relevante para o respetivo contexto. O URBACT acolhe – e sempre acolherá – abordagens da base para o topo que analisem o panorama geral. A Walk'n'Roll é fruto da última ronda de Redes de Planeamento de Ação e, segundo se espera, o próximo conjunto de cidades URBACT dará continuidade ao seu legado e aplicará o seu conhecimento.
Artigo da autoria de Ivan Tosics, submetido a 20/01/2023